Domingo, 25 de Janeiro de 2009

-  Sr. Múrias se não se importa…Aperte melhor a sua batinha e deite-se aí de lado na marquesa… Vai adormecer com a anestesia e nós vamos já passar-lhe com uma ondinha gigante por cima!

Aconteceu-me há algumas semanas atrás (dia 3 de Dezembro de 2008).

Tinha feito análises ao sangue, andava a sentir-me fraco e tinha hemorragias cada vez que ia à casa de banho. 

Até ao último minuto andei a fazer de conta que não era nada…

Nada!!! É tão fácil não ter nada…basta não olharmos…

Mas um dia venci a arrogância de não olhar. Com um preço, no entanto… Naquela noite o “nada” estava prestes a tornar-se em qualquer coisa, afinal. Qualquer coisa maligna que uma colonoscopia iria revelar durante o sono traiçoeiro da anestesia; a revelação daquilo que nenhum de nós quer ou está preparado para ouvir: o anúncio do “fim”.

O meu fim? Sim, o meu fim à vista!

Enquanto me despia na cabine parei por alguns segundos, olhei para cima, numa espécie de prece:

- “Não mereço isto! Não mereço isto!”

Irónico. Ou melhor, patético. Como se o simples facto de pedir,  olhando o tecto, seja o bastante para que não aconteça. Não é de estranhar então que merecido, ou não,  aconteceu o que eu achava que não merecia. Ou porque o meu pedido não chegou ao destinatário,  ou porque este o ignorou, ou então porque  não há um destinatário para estas coisas.

 Quando acordei da anestesia, duas raparigas novas, certamente técnicas da clínica onde fiz o exame, conversavam baixinho:

- “Vai ter que andar com um saquinho” - segredou uma delas, sem se aperceber que eu despertara de um sono intranquilo, e que estava agora a acordar para o pesadelo.

Desconheço se era de mim que falavam.  Mas o que ouvi assustou-me. E ainda hoje, mesmo com esse cenário fora do horizonte, a ideia de andar com um saquinho à cintura para o resto da vida, fazendo por aí as minhas necessidades, não me deixa dormir em paz.

Logo de seguida, chega a médica que me fez a colonoscopia. Estava ainda com a máscara cirúgica na cara que lhe escondia a expressão de cara, mas não lhe calava o que o olhar me diziam:

- “Tem um tumor no recto Sr.Múrias!”

Não me lembro quanto tempo passou desde que essas palavras começaram a andar vertiginosamente à roda, dentro da minha cabeça, divertindo-se  como adolescentes numa montanha russa; não me lembro sequer de me ter vestido. Não sequer me lembro de ter reclamado,  ou de pedir contas olhando de novo para cima, quando voltei à cabine para me vestir.

Lembro-me apenas de ter ouvido uma das funcionárias dizer :

- “Que horror! É tão tarde! Vou chegar a casa tardíssimo!”

Senti-me o homem mais só deste mundo.  Só eu ali não tinha pressa de ir a lado algum.  Toda a gente a pensar em ir à sua vida. Eu ali a pensar num encontro com a morte.

- “Graças a Deus pela Medicina privada que nos trata assim com este enorme carinho!” – não pude deixar de ironizar.

Irónico, não é?  Ser assim que ficamos a saber que vamos morrer. As mensageiras a olhar para o relógio, com a frieza de quem tem a rotina de conviver  com o agoiro, apontam-nos os dias do fim,  e ao mesmo tempo a porta da saída.

Saí para a rua e fiquei largos minutos sentado no carro. Nem me lembrei que o melhor era até não conduzir. Mas fiz-me à estrada, pensando no enorme Tsunami que tinha pela frente.

No meu telefone havia rasto de telefonemas de amigos e do meu irmão.

Nessa noite, adormeci a minha filha, com uma história. Ao vê-la ali a dormir pensei:

 

- “Ninguém, com a sorte que eu tenho em ter uma filha como tu, se pode sentir o homem mais só deste mundo!”.

Dei-lhe um beijo, aconcheguei-a bem e disse-lhe, em pensamentos:

- “Não vou morrer, filha! Vou enfrentar este Tsunami!”

 



publicado por Novas Crónicas da Sala de Espera às 19:09 | link do post | comentar | favorito

6 comentários:
De angelserenity a 3 de Fevereiro de 2009 às 14:00
Por vezes, más notícias são apenas barreiras que temos de ultrapassar para sermos mais felizes e vermos o mundo de outra maneira, para aproveitarmos mais. Acredito que vá conseguir ver as coisas assim quando, daqui a algum tempo, lhe disserem que já está tudo bem. que venceu. Vou estar a torcer por si, a desejar que tudo corra bem :-) Cada sorriso da sua menina fará sentir-se melhor.
Boa sorte e força.
Beijinho


De Novas Crónicas da Sala de Espera a 4 de Fevereiro de 2009 às 12:21
Um abraço
Obrigado!!!!


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Este é um díario, com cónicas que leio todos os dias no Rádio Clube, durante o programa Janela Aberta. São relatos da experiência que vivo na luta contra um tumor no recto. Emite todos os dias depois das 18h15.
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