- Sr. Múrias se não se importa…Aperte melhor a sua batinha e deite-se aí de lado na marquesa… Vai adormecer com a anestesia e nós vamos já passar-lhe com uma ondinha gigante por cima!
Aconteceu-me há algumas semanas atrás (dia 3 de Dezembro de 2008).
Tinha feito análises ao sangue, andava a sentir-me fraco e tinha hemorragias cada vez que ia à casa de banho.
Até ao último minuto andei a fazer de conta que não era nada…
Nada!!! É tão fácil não ter nada…basta não olharmos…
Mas um dia venci a arrogância de não olhar. Com um preço, no entanto… Naquela noite o “nada” estava prestes a tornar-se em qualquer coisa, afinal. Qualquer coisa maligna que uma colonoscopia iria revelar durante o sono traiçoeiro da anestesia; a revelação daquilo que nenhum de nós quer ou está preparado para ouvir: o anúncio do “fim”.
O meu fim? Sim, o meu fim à vista!
Enquanto me despia na cabine parei por alguns segundos, olhei para cima, numa espécie de prece:
- “Não mereço isto! Não mereço isto!”
Irónico. Ou melhor, patético. Como se o simples facto de pedir, olhando o tecto, seja o bastante para que não aconteça. Não é de estranhar então que merecido, ou não, aconteceu o que eu achava que não merecia. Ou porque o meu pedido não chegou ao destinatário, ou porque este o ignorou, ou então porque não há um destinatário para estas coisas.
Quando acordei da anestesia, duas raparigas novas, certamente técnicas da clínica onde fiz o exame, conversavam baixinho:
- “Vai ter que andar com um saquinho” - segredou uma delas, sem se aperceber que eu despertara de um sono intranquilo, e que estava agora a acordar para o pesadelo.
Desconheço se era de mim que falavam. Mas o que ouvi assustou-me. E ainda hoje, mesmo com esse cenário fora do horizonte, a ideia de andar com um saquinho à cintura para o resto da vida, fazendo por aí as minhas necessidades, não me deixa dormir em paz.
Logo de seguida, chega a médica que me fez a colonoscopia. Estava ainda com a máscara cirúgica na cara que lhe escondia a expressão de cara, mas não lhe calava o que o olhar me diziam:
- “Tem um tumor no recto Sr.Múrias!”
Não me lembro quanto tempo passou desde que essas palavras começaram a andar vertiginosamente à roda, dentro da minha cabeça, divertindo-se como adolescentes numa montanha russa; não me lembro sequer de me ter vestido. Não sequer me lembro de ter reclamado, ou de pedir contas olhando de novo para cima, quando voltei à cabine para me vestir.
Lembro-me apenas de ter ouvido uma das funcionárias dizer :
- “Que horror! É tão tarde! Vou chegar a casa tardíssimo!”
Senti-me o homem mais só deste mundo. Só eu ali não tinha pressa de ir a lado algum. Toda a gente a pensar em ir à sua vida. Eu ali a pensar num encontro com a morte.
- “Graças a Deus pela Medicina privada que nos trata assim com este enorme carinho!” – não pude deixar de ironizar.
Irónico, não é? Ser assim que ficamos a saber que vamos morrer. As mensageiras a olhar para o relógio, com a frieza de quem tem a rotina de conviver com o agoiro, apontam-nos os dias do fim, e ao mesmo tempo a porta da saída.
Saí para a rua e fiquei largos minutos sentado no carro. Nem me lembrei que o melhor era até não conduzir. Mas fiz-me à estrada, pensando no enorme Tsunami que tinha pela frente.
No meu telefone havia rasto de telefonemas de amigos e do meu irmão.
Nessa noite, adormeci a minha filha, com uma história. Ao vê-la ali a dormir pensei:
- “Ninguém, com a sorte que eu tenho em ter uma filha como tu, se pode sentir o homem mais só deste mundo!”.
Dei-lhe um beijo, aconcheguei-a bem e disse-lhe, em pensamentos:
- “Não vou morrer, filha! Vou enfrentar este Tsunami!”
Instante Fatal