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P.
Há quem esteja bem pior do que a senhora de lenço na cabeça que esteve à minha frente várias horas esta segunda-feira na quimioterapia...
Há quem esteja bem pior que o homem que vi sofrer em silêncio embrulhado num cobertor tremendo de frio, também na sala da quimioterapia...
Bem pior, que eu, que hoje sinto as náuseas e as tonturas dos efeitos secundários da medicação...
(pausa)
No caminho aqui para a Rádio, três mulheres conversavam alto sobre as suas doenças...
Várias doenças....
Aparentemente uma queixava-se de um mal de família...Amanhã vou ao Dr. Lacerda que é um "pão"...
Eu vou às cinco, e a minha mãe às cinco e meia...
Outra perguntava-se se havia urologistas para senhoras...ou se um urologista era uma espécie de "ginecologista" para eles...
A terceira brindou toda a carruagem do comboio com o relato de uma amiga que fez um aborto espontâneo no Amadora-Sintra que é o hospital da residência...
"Vejam lá que a médica lhe ligou para o telemóvel, a perguntar se precisava de apoio psicológico, em vez de a chamar para uma consulta!...
Ela que andou ali a gravidez a pagar o dela na privada para depois ter que ir para o hospital público!..."
(pausa)
Que bem que me sinto a ouvir estas conversas...
Não é pelo voyerismo...
Um cusco como eu escuta pessoas interessantes, não escuta Donas de Casa Desesperadas...
Vidas desinteressantes, não me interessam para nada...
(pausa)
Mas há uma leitura a fazer...
Estas mulheres espalham boateira e hipocondria como uma vulgar galinha de Honk Kong mata três pessoas com gripe das aves...
Entopem salas de espera porque o médico é um borracho e até lhe anda ali a dar uma dor no joelho...
Descrevem ecografias virtuais..
Revelam as angústias de amigas, que perderam os seus bebes, a não sei quantos passageiros da linha de Cascais...
(pausa)
Que saudável me sinto eu ao pé destas mulheres...
Que é um tumor no recto ao pé de uma vida fútil?
Bem, o tumor trata-se...
(lida a 28 de Janeiro no Rádio Clube)
Entrei ontem na sala da Quimioterapia pela primeira vez.
É uma sala grande, cheia de cadeirões, onde uma mão cheia de pessoas recebe soros e tratamentos injectados gota a gota durante muitas horas.
Sentei-me numa cadeira vaga.
Devo dizer que me senti um pouco como no meu primeiro dia de escola.
(pausa)
Ou como no meu primeiro dia na tropa em Mafra...em que a revolta era tanta, que muito desejei então, e ontem também, que aquilo fosse uma espécie de guerra do solnado...
(entra guerra do solnado 1)
Só o humor consegue reduzir o medo ao ridículo...
Só o humor consegue espantar para longe da janela os anjos da morte que esperam pacientes nos telhados circundantes ao hospital...
Só o humor me fez aguentar estar ali como se estivesse no café a ler o jornal num sábado de manhã...
(pausa)
Embora a ali a guerra não seja bem a do solnado, realmente. É talvez mais uma guerra a sério, como aquela onde esteve o meu pai em Angola. ...com filhos de meses, ali na zanzala, ouvindo as hienas sempre à espreita de lhe lançar o seu tenebroso riso de morte...
(pausa)
Resolvi por isso fazer o meu primeiro stand up comedy...
Em homenagem ao meu pai, mas também a todos os que ali estavam ontem a sofrer em silêncio, como eu estava também...
E como o sei que o meu pai terá feito para com os seus soldadas...ajudando-os a afastar as hienas..a calar-lhes o riso agoirento...
(pausa)
Virei-me para uma jovem que estava ao meu lado, com medo da agulha que lhe entrava pela mão, e disse-lhe...
"Psst! Sou amigo do director do hospital, a partir de agora o teu tratamento leva sempre gelo e limão!"
"Senhora enfermeira?"
"Sim senhor Múrias!"
"Quando chegarem os senhores da SIC que oferecem presentes e dão beijinhos a doentes oncológicos, diga-lhes que quero uma bicicleta, e aqui este amigo ao lado deseja ser beijado pela Soraia Chaves!"
"Senhora enfermeira?"
"Sim senhor Múrias!"
"Quanto é que nos pagam à hora aqui nesta unidade?"
(emitida em 28 de Janeiro de 2009)
Nota: todas estas crónicas estão disponíveis no Podcasto do Rádio Clube - http:\\radioclube.clix.pt
Podem ouvir todas as minhas crónicas no site do Rádio Clube:
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P.
Todas as salas de espera de um hospital têm uma televisão ligada.
Por isso, todas as histórias que aqui vos conto têm como som de fundo um passatempo na TV... onde se oferecem milhares de euros a quem responde certo a perguntas de cultura geral:
Que idade tem o realizador Manuel de Oliveira?
Como se chama o candidato derrotado por Barack Obama nas presidenciais americanas?
Qual o nome da ex-modelo e ex-namorada de Cristiano Ronaldo que aparece na capa da última Playboy?
É também quase garantido que em todas as salas de espera, se no lugar dessas televisões estivesse um aquário com peixes, ninguém dava pela diferença...
Bem...nenhum peixinho dourado se entusiasmaria da mesma forma que o Manuel Luís Goucha se entusiasma, sempre que há uma senhora da Marinha Grande, ou de Chelas, leva para casa 12 mil e quinhentos euros...
Nenhum peixinho dourado se comoveria como Fátima Lopes perante as lágrimas de uma socialite trocada mais uma vez pelo namorado...
A verdade é que nas salas de espera não se atenta assim tanto às manhãs e tardes de televisão...
A dor pessoal ali.. é uma rotina que filtra emoções exteriores...
(pausa)
Ontem à minha frente...uma senhora que rezava segurava um terço de plástico enquanto lia, atendia telefonemas de amigas e de uma filha que lhe perguntou pelo pai que estava no tratamento...
Ao lado um tipo barbudo, com ar de crítico literário dos anos 70, jogava playstation portable...
Será que jogava o "God of war" - O deus da guerra", um dos jogos mais vendidos para esta consola?
Eu próprio segurava na mão um pequeno, rádio onde ouvia o Diogo Batáguas, ao telefone com um entrevistado VIP à hora do almoço...
Enquanto tudo isto acontecia, um bombeiro escrevia na porta do WC...
Bombeiros Voluntários de Ourém...
Até que me chamam
Pedro Múrias gabinete 3...
(crónica lida a 22 de Janeiro)
Escrevo isto domingo, porque segunda feira, é o dia em que começo a minha quimio e radioterapia...
Estou em casa. A minha filha está deitada num sofá, a ver o Canal Disney, eu estou estou num outro sofá. A mãe saiu, trabalha hoje...
Lá fora os meus dois cães estão deitados à porta de casa, e o meu gato insiste em dormir em cima da televisão (o que eu odeio).
(pausa)
Não sei porquê, mas hoje só me lembro do meu velho cão, Twiggy, que já morreu há muitos anos...
Uns bons vinte anos, diria mesmo...
Há uma semana atrás lembrei-me dele quando estava na consulta em Santa Maria...
(pausa)
Olhos negros de rafeiro...
Falavam para mim quando estava triste, ou com medo de alguma coisa...
Medo de estar sozinho em casa, sem os meus pais...quando era criança...
Medo de enfrentar um amor...quando era adolescente...
Sei que me entendia, talvez lesse o meu olhar como eu lia o dele...
Queria-te comigo hoje Twiggy...
Hoje estou com medo...
Aquele medo igual ao dia em que uns miúdos me tentaram bater, e tu não deixaste...
Aquele medo que tiveste quando um enorme cão te tentou matar na Praia de Carcavelos...e eu não deixei...
O medo de ver o meu corpo invadido por um líquido que me vai entrar talvez pelo braço,
O medo de ver o meu corpo ser invadido por raios que me vão atravessar pelas costas...
(pausa)
As corridas em volta da casa que davas quando eu chegava das aulas...
As vezes que me seguias até à estação do comboio porque querias que te levasse para a escola...
O orgulho que mostravas quando ficavas de guarda ao balde do peixe quando íamos à pesca...
A manha com que conseguias iludir os meus pais e dormias a noite toda comigo no meu quarto...
Queria-te comigo hoje Twiggy...
Sei que a partir de hoje o meu tumor vai encolher um bocadinho todos os dias...
Mas hoje estou com medo... sabes isso, não sabes?
Crónica lida Rádio Clube a 26 de Janeiro (Programa Janela Aberta - estou lá todos os dias às 18h15)
- Sr. Múrias se não se importa…Aperte melhor a sua batinha e deite-se aí de lado na marquesa… Vai adormecer com a anestesia e nós vamos já passar-lhe com uma ondinha gigante por cima!
Aconteceu-me há algumas semanas atrás (dia 3 de Dezembro de 2008).
Tinha feito análises ao sangue, andava a sentir-me fraco e tinha hemorragias cada vez que ia à casa de banho.
Até ao último minuto andei a fazer de conta que não era nada…
Nada!!! É tão fácil não ter nada…basta não olharmos…
Mas um dia venci a arrogância de não olhar. Com um preço, no entanto… Naquela noite o “nada” estava prestes a tornar-se em qualquer coisa, afinal. Qualquer coisa maligna que uma colonoscopia iria revelar durante o sono traiçoeiro da anestesia; a revelação daquilo que nenhum de nós quer ou está preparado para ouvir: o anúncio do “fim”.
O meu fim? Sim, o meu fim à vista!
Enquanto me despia na cabine parei por alguns segundos, olhei para cima, numa espécie de prece:
- “Não mereço isto! Não mereço isto!”
Irónico. Ou melhor, patético. Como se o simples facto de pedir, olhando o tecto, seja o bastante para que não aconteça. Não é de estranhar então que merecido, ou não, aconteceu o que eu achava que não merecia. Ou porque o meu pedido não chegou ao destinatário, ou porque este o ignorou, ou então porque não há um destinatário para estas coisas.
Quando acordei da anestesia, duas raparigas novas, certamente técnicas da clínica onde fiz o exame, conversavam baixinho:
- “Vai ter que andar com um saquinho” - segredou uma delas, sem se aperceber que eu despertara de um sono intranquilo, e que estava agora a acordar para o pesadelo.
Desconheço se era de mim que falavam. Mas o que ouvi assustou-me. E ainda hoje, mesmo com esse cenário fora do horizonte, a ideia de andar com um saquinho à cintura para o resto da vida, fazendo por aí as minhas necessidades, não me deixa dormir em paz.
Logo de seguida, chega a médica que me fez a colonoscopia. Estava ainda com a máscara cirúgica na cara que lhe escondia a expressão de cara, mas não lhe calava o que o olhar me diziam:
- “Tem um tumor no recto Sr.Múrias!”
Não me lembro quanto tempo passou desde que essas palavras começaram a andar vertiginosamente à roda, dentro da minha cabeça, divertindo-se como adolescentes numa montanha russa; não me lembro sequer de me ter vestido. Não sequer me lembro de ter reclamado, ou de pedir contas olhando de novo para cima, quando voltei à cabine para me vestir.
Lembro-me apenas de ter ouvido uma das funcionárias dizer :
- “Que horror! É tão tarde! Vou chegar a casa tardíssimo!”
Senti-me o homem mais só deste mundo. Só eu ali não tinha pressa de ir a lado algum. Toda a gente a pensar em ir à sua vida. Eu ali a pensar num encontro com a morte.
- “Graças a Deus pela Medicina privada que nos trata assim com este enorme carinho!” – não pude deixar de ironizar.
Irónico, não é? Ser assim que ficamos a saber que vamos morrer. As mensageiras a olhar para o relógio, com a frieza de quem tem a rotina de conviver com o agoiro, apontam-nos os dias do fim, e ao mesmo tempo a porta da saída.
Saí para a rua e fiquei largos minutos sentado no carro. Nem me lembrei que o melhor era até não conduzir. Mas fiz-me à estrada, pensando no enorme Tsunami que tinha pela frente.
No meu telefone havia rasto de telefonemas de amigos e do meu irmão.
Nessa noite, adormeci a minha filha, com uma história. Ao vê-la ali a dormir pensei:
- “Ninguém, com a sorte que eu tenho em ter uma filha como tu, se pode sentir o homem mais só deste mundo!”.
Dei-lhe um beijo, aconcheguei-a bem e disse-lhe, em pensamentos:
- “Não vou morrer, filha! Vou enfrentar este Tsunami!”
Instante Fatal